Parte I: os carvalhos cerqueiros são híbridos
A — Importância dos marcadores genéticos no estudo dos híbridos
Pela publicação de parte do presente trabalho [Oliveira et al. 2003], fez-se a primeira demonstração genética do hibridismo dos carvalhos cerqueiros, à qual se seguiu mais recentemente a publicada sobre material italiano através das regiões ITS do rDNA [Bellarosa et al. 2005]. Anteriormente, o seu estatuto híbrido só se podia aferir por critérios morfológicos e geográficos, e que não deixavam margem para dúvidas: os seus caracteres morfológicos assemelham-se aos de azinheira ou de sobreiro ou, se diferentes dos destas duas espécies, são-lhes intermédios; e a sua ocorrência é tanto quanto se saiba dispersa, sempre na proximidade de sobreiro e azinheira.
Os marcadores isoenzimáticos utilizados no decurso do presente trabalho permitem que a aferição desse estatuto híbrido se faça também por critérios genéticos. Esta nova dimensão de análise só é válida se apoiada em amostragens, das duas espécies, que sejam suficientemente representativas para definir com segurança o grau de especificidade de cada marcador, o que à escala limitada do Alentejo foi encetado com o presente estudo; uma vez estabelecida essa definição, torna-se possível detectar híbridos em qualquer contexto — tarefa especialmente importante no rastreio de materiais de propagação, onde a morfologia dos híbridos parece não ser distintiva — e ir além dos híbridos para caracterizar as linhagens que deles descendem. Com os marcadores genéticos, em suma, abre-se o caminho à investigação de pelo menos duas questões ligadas às descendências dos híbridos:
i) A dinâmica de formação e manutenção de genótipos introgredidos nas populações de sobreiro e de azinheira.
ii) A correspondência entre a qualidade da cortiça do sobreiro (e doutras características de interesse económico, tanto em sobreiro como em azinheira) e a presença de marcadores genéticos da outra espécie.
Em relação à segunda questão, também se inclui a possibilidade dum melhor esclarecimento dos sobreiros de estatuto duvidoso, como os de cortiça preguenta e os “negrais”.
Os estudos já existentes com marcadores de DNA citoplásmico, sobretudo o de Jiménez et al. [2004], sugerem que muitos dos indivíduos de cada uma das duas espécies — senão mesmo todos — têm algum grau de introgressão de genes da outra espécie, o que não surpreende tendo em conta a já longa presença das duas linhagens filogenéticas na Bacia do Mediterrâneo. Assim sendo, quanto maior a cobertura do genoma de cada espécie com marcadores genéticos, mais provável será encontrarem-se ambiguidades derivadas da presumível introgressão entre ambas, nomeadamente de azinheira em sobreiro. É por isso que, mais do que esta consideração teórica sobre a “pureza” de cada espécie, a definição de marcadores genéticos fiáveis deve ser valorizada pelo impacto económico que o hibridismo entre sobreiro e azinheira pode ter, e ambas as questões destacadas acima são fundamentais para a sua compreensão.
Apesar de ser indicada como híbrida e apresentando características atribuídas aos carvalhos cerqueiros, a planta SM2 poderia ser, na verdade, descendente dum híbrido — pelo menos assim indica o zimograma PGM semelhante a sobreiro, que não é contradito por nenhuma das descendentes dele obtidas que foram analisadas. Uma hipótese alternativa é a de tratar-se dum híbrido de primeira geração entre sobreiro e azinheira, mas cujo alelo de azinheira é o raro Pgm5 (a sua frequência esteve globalmente abaixo de 0,01, mas atingiu cerca de 0,025 nas plantas provenientes de Testa e no pólen em Alfaiates), que é indistinguível do de sobreiro.
Note-se que a primeira hipótese (descendente de híbridos) seria virtualmente irrefutável caso houvesse mais loci incaracterísticos dos híbridos. A incerteza sobre a classificação da planta SM2 põe em evidência dois aspectos da análise do hibridismo centrada em marcadores genéticos: por um lado, a possibilidade de distinguir entre híbridos de primeira geração e gerações deles descendentes, mesmo quando se assemelhem fenotipicamente; mas por outro, a necessidade de dispor de tantos marcadores diagnosticantes quantos seja possível para realizar essa distinção.
B — Comportamento genético dos marcadores de hibridismo
Tratando-se de marcadores genéticos, é de prever que a transmissão dos genes respectivos através dos gâmetas seja conforme as predições da teoria genética, análise que foi realizada nas descendências dos híbridos.
Os marcadores DIA e GsR produziram nos híbridos zimogramas (“X”) que puderam ser interpretados como intermédios entre os de sobreiro e azinheira. Esses zimogramas apareceram também nas descendências dos híbridos, embora nestas também reaparecessem os que são típicos das duas espécies (“Sb” e “Az”), indicando tratar-se dum só locus: tendo em conta a identificação, feita com base no conjunto de marcadores diagnosticantes, da proveniência do grão de pólen que lhe deu origem, foi possível deduzir em cada descendente qual dos dois alelos proveio do gametófito feminino (isto é, do híbrido), tendo-se verificado para ambos os loci uma boa corespondência com as proporções esperadas de acordo com a lei da segregação dos alelos nos gâmetas (½ de gametófitos femininos com o alelo de sobreiro e ½ com o de azinheira).
No caso dos marcadores MDH, é possível separar pelo menos a actividade que migra para o cátodo no sistema C (MDH–) das restantes (MDH+). Nos híbridos, o zimograma MDH– era composto por 2 bandas comigrando com os marcadores de sobreiro e azinheira, isto é, houve uma expressão codominante do que parecem ser alelos dum locus codificando uma actividade MDH. Tal como em DIA e GsR, as descendências dos híbridos apresentavam, para este marcador, ou o zimograma dos híbridos ou os de sobreiro ou de azinheira. Mas a dedução do que seriam os alelos presentes nos gametófitos femininos dos híbridos resultou num desvio em relação às proporções esperadas (significativamente mais de ½ aparentemente portador do alelo de sobreiro), o que era esperado tendo em conta a menor consistência da actividade de azinheira, patente já na análise nesta espécie; assim, haverá uma proporção de zimogramas MDH– que fora visualizados como sendo “Sb”, sendo na realidade “X”.
O marcador anódico (MDH+) apresentou nos híbridos um zimograma que, pelo número e intensidade das bandas, foi interpretado como intermédio entre sobreiro e azinheira. Nas descendências dos híbridos, para além dos zimogramas de azinheira, sobreiro e híbridos, observaram-se novas distribuições de actividade que aparentemente resultam de genótipos recombinantes em mais dum locus que não foi possível analisar em detalhe. Apesar desta complexidade e de alguns problemas de interpretação a ela inerentes, a classificação simplificada de cada zimograma dentro de classes “Az”, “Sb” e “X” conduziu a um resultado global muito próximo da expectativa de segregação nos híbridos.
A expressão das actividades PGM não foi detectada na maior parte dos híbridos, e por si só não informa sobre a presumível extensão da interpretação genética dada para as folhas de azinheira (um só locus polimórfico, enzima monomérico), isto é, nos híbridos encontrar-se-iam sempre o alelo de sobreiro e um dos alelos de azinheira, enquanto nas suas descendências apareceriam todas as combinações entre os alelos de azinheira e o de sobreiro, incluindo as das espécies parentais. A expectativa para as descendências confirmou-se, até permitindo determinar o genótipo de SM1 — e nesta pelo menos, a segregação dos alelos de sobreiro e azinheira nos gâmetas femininos dos híbridos correspondeu à proporção esperada de ½ para cada.
As actividades PGI polimórficas deveriam apresentar-se, tanto nos híbridos como nas suas descendências, com um repertório de zimogramas ainda mais variado do que em sobreiro e mesmo em azinheira, mas a ausência de registos precisos sobre essa variabilidade (excepto em sobreiro) não permite verificar as expectativas com rigor. No entanto, a proporção aumentada de zimogramas + nessas descendências, bastante próxima dos valores teoricamente esperados (cf. nota de rodapé à secção D3 da III parte de “Resultados”) é concordante com a interpretação genética feita para as duas espécies.
Globalmente, pode concluir-se que os genes codificando actividades discriminantes entre sobreiro e azinheira são alélicos nos híbridos. Só nos casos de GDH (sementes) e PGD não se podem tirar conclusões porque os dados são insuficientes, e no de EST (sistema R) a expressão do marcador de azinheira (banda 1) no material híbrido também não foi interpretada, pelo desconhecimento da base genética das actividades observadas.
Outra perspectiva que se abre com o presente estudo é a adopção da mesma estratégia para a análise do hibridismo entre outros pares de espécies do género Quercus. Em geral obteve-se expressão consistente das actividades já reconhecidas em sobreiro, azinheira e seus híbridos, e algumas (principalmente DIA e MDH+) sugerem a possibilidade de discriminação interspecífica. Embora a amostragem apresentada na figura 4.18 tenha reduzida relevância para o panorama de hibridismo de espécies ibéricas sumarizado na figura 2.3, é possível que uma investigação sistemática dirigida à validação de marcadores de hibridismo nessas espécies confirme este potencial.