Paulo Guimarães: estudos: história mineira

História mineira e industrial em Portugal (séculos XIX e XX)

Portuguese Mining and Industrial History  (19th to 20th centuries)

Crónica da Ordem Pública

Sendo certo que pouco ficou escrito do modo como se fez a Associação dos trabalhadores desta vila, porquanto os mineiros pouco escreviam, quer por não conhecerem essa arte ou falta de tempo, a verdade é que alguma papelada ficou. E desta conta devemos tirar os papéis queimados pela Ordem Pública em diversas vezes, como que em ondas sucessivas, de cada vez que, em diferentes anos, os mineiros a ameaçaram por razões que adiante diremos. E sendo certo também que os principais instigadores da rebelião eram deportados para as Áfricas, pois que criminosos eram para a Ordem Pública, ou presos, ou despedidos, é esta mesma a razão de não ter ficado na memória das gentes desta terra, e dos mineiros em particular, notícia do modo como se fez a Associação e de outras coisas. E desta guisa memória colectiva é cousa que damos por não haver ou que não pode haver, e havendo isso sim gerações operárias, querendo nós com isto dizer que cada vez que a Ordem Pública vingava eram substituídos os rebeldes principais, como está dito, começando a organização operária de novo; e de tal guisa que a consciência operária não podia buscar experiências passadas por delas não haver notícia. E isto mesmo o pretendia a Ordem Pública com o queimar dos papéis sindicalistas por modo de queimar também a sua história. Alguma coisa ficou, porém; a saber: os papéis da mina e do administrador do concelho e mais uma memória do irmão do Valentim Adolfo João, grande sindicalista que foi destas paragens, tendo-a escrito de seu punho em idade muito avançada e de fraca memória. Desta dita pomos aqui escrito apenas as coisas que temos por certas, sendo a verdade a nossa preocupação primeira e não o jeito ou o estilo que obriga o cronista a pôr certo o que incerto é, e a dar por certo o que é de duvidar, sendo esta a razão de não falarmos de outras lutas havidas na mina antes da República por não haver notícias delas, sendo certo que as houve, porém, sem ordem nem Associação. E por lutas entendemos nós as que ameaçavam a Ordem Pública, resultado da condição miserável do operariado; e são essas lutas de dois tipos, a saber, as que são reacção pessoal à Ordem que oprime e põe miséria nas famílias, podendo ser

Membros do grupo cultural União que funcionava no sindicato mineiro de Aljustrel

 

Foto de autor desconhecido (c. 1926).

roubo ou violência; e as que são colectivas e devem, por sua própria natureza, ser organizadas e obrigam a grande sabedoria e mais a consciência.

Trecho do capítulo 4

                 Em 1983 escrevi uma pequena diversão literária e que, ao mesmo tempo, se destinava a colocar em circulação junto da população mineira de Aljustrel, com a esperança de poder encontrar ainda testemunhos orais relativos a acontecimentos ocorridos em data anterior aos anos ‘40 do século XIX. Nela compilava as informações que dispunha a partir dos arquivos locais e de alguns escassíssimos testemunhos, como o de Manuel Patrício, antigo trabalhador mineiro e sindicalista, e irmão do militante anarco-sindicalista Valentim Adolfo João,  que tinha falecido em finais dos anos ‘60. Recordo ainda que nessa altura os arquivos da PIDE e do Ministério do Interior estavam inacessíveis. Os acontecimentos eram narrados como nas crónicas antigas e acrescentei-lhe uma introdução puramente ficcional. O texto acabou por ser publicado pelo Sindicato dos Trabalhadores Mineiros da Indústria do Sul e impresso em Beja na tipografia do Diário do Alentejo com uma tiragem de 750 exemplares. A escritora Maria Rosa Colaço parece ter gostado bastante da obra. Fiquei com essa ideia quando a encontrei pouco tempo depois.

                 Este livro acabou por ter um efeito inesperado. Na tentativa de recuperar a memória de algumas músicas do antigo movimento social, introduzi  (p. 46) os versos da canção “Santa Bárbara Bendita” que ficou celebrizada durante a Revolução em Espanha (1936-1938) com a advertência: “estes versos não são conhecidos dos mineiros de Algares e São João & São Domingos.  Pouco depois, passou a integrar o repertório do grupo coral mineiro e voltou a ser cantado onde quer que fossem.

Crónica da Ordem Pública (1861-1932) / Paulo Guimarães - Aljustrel: Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira do Sul (1861-1932), 1984. - 103 pp.; il.

Última actualização 2 de Abril de 2010