Fitas de 2001 Conspiração.com
O corpo

O último castelo
Vanilla Sky
A irmandade do anel
Cercados
Os outros
Uma mente brilhante
Ocean's Eleven

O Conde de Monte Cristo
O quarto do filho
Jack o estirpador
Mulholland Drive

Gosford Park
A profecia das sombras
Sala de pânico
A rainha dos malditos

O caso do colar
O homem-aranha
Terra de ninguém
as que não se viram (I)

Infiel
Resident Evil
Mulher Fatal
Não brinques com estranhos
Caminho para Perdição
Relatório minoritário
O dragão vermelho
Sinais

As que não se viram (II)
Fitas de 2006
Fitas de 2007
Fitas de 2008
Fitas de 2009
Fitas de 2010
Fitas de 2011
Fitas de 2012
Fitas de 2013

01 Conspiração.com — O corpo

Na segunda metade dos anos 90, o mundo da programação de computadores polarizou-se entre os que procuram a todo o custo conquistar as fatias disponíveis do mercado informático e os partidários de que a melhor maneira desse mundo progredir é pela partilha do conhecimento (dita "open source" em referência à divulgação sem restrições dos códigos de programação), impeditiva de monopólios e motivadora, nos potenciais clientes, de maior critério e discernimento. É uma luta de morte. Por exemplo, quando se sente que vai haver uma importante abertura do mercado, logo se inicia no primeiro campo uma luta de titãs onde impera a crença que quem chegar primeiro pode ficar com tudo, mas é do campo oposto que vem uma ameaça para esses sonhos de poder porque, quando consegue ganhar a corrida, ninguém pode ficar com tudo porque o tudo é de todos. Esta polarização vive-se hoje em alto grau e é muito oportunamente retratada na fita "Conspiração.com", que está no Alfa 1 de Évora.
A história gira à volta da criação de um sistema de telecomunicações onde a empresa de software NURV (nome que tanto pode ser a sigla para "Nunca Subestimar Visões Radicais", como ser uma homófona de "nerve", que pode ter o sentido de "ter lata"), liderada por um empresário/programador poderoso (Tim Robbins), pretende a todo o custo tomar a dianteira. É evidente que esta empresa e o seu líder são, em linguagem informática,uma "emulação" da Microsoft e de Bill Gates, que na vida real coseguiram grandes lucros através de estratégias "radicais". O filme trata de demarcar-se dessa identificação com as personagens fictícias que vemos, mas é evidente onde foram buscar a inspiração. Enfim, como a NURV quer chegar a todo o custo primeiro que todos, estabalecem para si próprios um prazo-recorde para o lançamento desse sistema, e declaram que farão tudo o que for necessário para consegui-lo, "sem limites".
Um jovem génio informático (Ryan Phillipe), que vinha do mundo da "open source", deixa-se seduzir e ingressa na NURV, mas acaba por perceber o que é que o patrão quer dizer com "sem limites". Em bom ritmo (embora com muitos dos vícios narrativos que caracterizam uma certa Hollywood), a fita lá nos leva para um desfecho feliz. Mas os bons que ganham, e os maus que perdem, são aqueles que não se suspeitava serem afinal, o enredo é mesmo bastante denso (às vezes demais para quem não esteja familizarizado com aquilo de que se está a falar) mas muito habilmente gerido; depois, há vários bónus informáticos: um genérico com código HTML a abrir, um apadrinhamento muito bonito da "open source" (numa Hollywood que perseguiu quem pôs à disposição na Internet a descodificação do formato DVD para Linux), o herói programar tudo em Java, e acima de tudo ser ele próprio uma emulação de um "cavalo de Tróia", enquanto explora todos os recantos da NURV. Não é uma fita perfeita, mas vale bem a pena.
De interesse nada menor é "O corpo", no Alfa 2. Se pela maneira como é anunciada pode levar muitos a pensarem o contrário, esta é uma fita que aborda certas questões da Fé cristã com muito respeito e discernimento. António Banderas encarna um padre latino-americano enviado a Jerusalém, pelo Vaticano, para investigar o que se passa com a descoberta de um sepulcro cujo corpo aparenta ser o do próprio Jesus Cristo. Numa terra que é tão complicada, este assunto logo mobiliza judeus e muçulmanos, cada campo com motivos muito próprios. A missão do padre está envolvida na protecção da Fé, e da Igreja, das consequências que tal descoberta possa vir a ter: se aquele corpo fosse o que estavam a pensar, isso contradizia a Ressurreição, uma das provas mais importantes da divindade de Jesus Cristo, pilar fundamental da Fé cristã e da Igreja no verdadeiro sentido — a comunidade de cristãos no seu todo.
De regresso a Roma, depois de muitas peripécias onde teve de arriscar a vida, o padre vem reforçado na sua Fé, sem sequer precisar de saber o que nos revela a dinamitação do sepulcro. Só que no meio dessas peripécias, várias pessoas morreram sem necessidade, uma vez mais em nome de questões religiosas nas quais a política não abdica de estar presente. O drama pessoal do padre é muito bem representado por Banderas, e o contraste que forma com a arqueóloga isralelita que descobriu o corpo (Olivia Williams) resulta bem; mas falando de contrastes, o maior e mais chocante aparece-nos com pergerinos cristãos que se lembram de pegarem em cruzes que não pesam muito, ou entrarem na Cidade Santa montados um burro, e outras mascaradas. Coisas que entretanto já pouco se vêem, presumo: esta fita parece ter sido rodada uma unha negra antes do lançamento da 2ª Intifada em 2000, a qual deu cabo do turismo nessas paragens, e deve ter sido a razão para adiar-se tanto tempo a sua distribuição. Antes tarde que nunca — vão ver.
Já agora, tomar nota: em 2001, não vieram a Évora (e deviam) "As penas do desejo", "Quase famosos", "Recursos humanos", "O gosto dos outros", "Memento", "Palavra e utopia", "O imperador e o assassino", "Disponível para amar", "Amor cão", "Irmão, onde estás?", "Enigma", "Pollock", "Jogo de poder", "The yards"... fora aquilo que de memória não consigo citar. Mais que suficiente, pelo número e calibre das omissões, para confirmar que falta a Évora mais uma sala de estreias. Vejam lá que até é capaz de nem vir cá a 1ª parte do "Senhor dos anéis...".
Finalmente, esta semana temos da Sociedade Harmonia Eborense a obra-prima "2001 — Odisseia no espaço", início de uma série de filmes às quintas-feiras da autoria de Stanley Kubrick.

02 O último castelo

No Alfa 1 de Évora apareceu mais um filme com Robert Redford, "O último castelo". Esta recente actividade da grande estrela dos anos 70 mostra-nos um actor muito maduro e senhor do seu nariz, que se permite escolher filmes de grande valia e que não deixam de fazer pensar (e muito). Desta vez, no papel de um general do exército norte-americano que acaba de ser condenado (justamente, note-se) a 10 anos de prisão militar, logo um general que era um nome reverenciado em todos os quadrantes da corporação, assim, caído em desgraça, misturado com a ralé desse mesmo exército condenada pelos mais diversos crimes na qualidade de militares. Um inferno... Só que o que parece mais um filme de prisão, e assim é durante a primeira parte algo banal, se desenvolve num drama de grande envolvência que o torna na realidade um filme de guerra, sim, e muito original e interessante: a prisão é um castelo que vai ser conquistado por dentro.
Desde cedo, se bem que de maneira subliminar, é revelado este carácter da fita: o ex-general, agora recluso, observa os troféus de guerra coleccionados pelo coronel comandante da prisão (James Gandolfini) e comenta que só quem nunca esteve num cenário de guerra pode fazer um museu dessas coisas no seu gabinete, pois ignora a dor que causam.
Esses troféus são apenas uma parte dos brinquedos do coronel: ele gosta de manipular os reclusos ex-militares que estão nessa prisão, e de usar à discrição os seus atiradores especiais para neutralizar os recalcitrantes. O ambiente entre os presos não é nada pacífico, mas ao ex-general vai ser necessário um mártir para declarar guerra dentro do castelo. E vai utilizar todo o seu talento de comando e de estratégia para trazer ao de cima não o pior que os seus colegas de prisão têm, o que seria apenas reforçar o motivo por que foram lá parar (típico de uma má gestão das prisões), mas sim o que eles têm de melhor, dentro da disciplina com que foram treinados para o combate pela bandeira do seu país. Alegoricamente, os presos são a nação que recruta um líder para uma missão que lhes resolva um problema por via militar, mas também são o exército que ele organiza para levá-la a cabo. Daqui se desenrola um verdadeiro ensaio sobre a disciplina e organização militares, onde a figura encarnada por Redford desempenha o papel de íman para todos: para os presos, para o inimigo, e para nós, espectadores.
Esta fita traz, no argumento e na realização, poderosos elementos para uma reflexão madura sobre esse aspecto das civilizações humanas que é o poder armado, no que pode ter de vil mas sobretudo de enobrecedor. E também nos dá uma oportunidade para analisar o que é o direito de castigar os outros. O comandante da prisão justifica-se perante o ex-general dizendo-lhe que, quando tem de punir algum preso, vai ao registo desse homem para rever o crime que ele cometeu e pelo qual foi condenado, e para quê? Para se sentir confortado nas suas acções de punição. Como se ir para a prisão não fosse a punição suficiente, decretada por quem tem a incumbência para tal, ele arroga-se o direito de agravá-la das maneiras mais variadas e prepotentes. Mas essas acções são crimes, e um dos objectivos da missão é demonstrar que o são para, por essa mesma via, fazê-lo cavar a sua própria cova. E mandá-lo para uma prisão também.
No final, aparecem três pedras com nomes gravados. De dois deles sabemos que se tratou de mártires. Do terceiro sabe-se apenas o que a pedra diz, não o motivo para alguém ter querido gravá-la. Muito mais tarde, também não se saberá o que as outras duas significaram, apenas se saberá que alguém gravou nomes ("chiseled in stone"): cada pedra dessas é um monumento a algo que a memória não grava além de um certo ponto, monumento que nada diz do que devia mas cuja presença duradoura diz o essencial: que mereceu a pena recordar alguém ou algo.

03 Vanilla Sky

O regresso de Tom Cruise às telas portuguesas, na fita "Vanilla Sky", foi estreia no Alfa 1 de Évora. Acaba por ser mais um daqueles filmes a mexerem com o mundo imaginário dos sonhos, em que o espectador já nem sabe o que é consciente ou inconsciente — e isso é logo o tema da primeira cena: um sonho que depois é repetido, passo a passo, na realidade. Tudo gira à volta de um menino rico (Cruise) que tem tudo o que quer sem precisar de comprometer-se, pois com o seu dinheiro não é obrigado a procurar, os outros é que são atraídos para ele. Mas se os sonhos lhe pregam partidas pavorosas, o pior é quando a amiga com quem ele às vezes dorme (Cameron Diaz) resolve mostrar-lhe como as atitudes dele têm de ter consequências. Isto, porque de repente ele se deixa apaixonar por uma espanhola (Penelope Cruz) que um amigo trouxe para a sua festa de anos. O que se segue a um acidente de automóvel que mata essa amiga de longa data, e o deixa em muito mau estado, deixa de ter um encadeamento natural, com grandes misturas de real e imaginário. Há os estranhos "flashes"que atormentam o protagonista, e as cenas num hospital da polícia com um psicólogo (Kurt Russell) que irá determinar se ele está bom da cabeça (senão, os "7 anões", sócios minoritários da empresa que ele herdou do pai, tomam conta de tudo — realmente, há apenas uma resposta para 99% das perguntas que se fazem: dinheiro), um cão que foi ressuscitado dum bloco de gelo, o reencontro com a espanhola... muito disto é real, mas até ao fim não iremos saber o quê.
Há, através disso tudo, as referências à "face de Janus", duas caras num mesmo rosto como quem diz uma coisa e pensa outra, e que vão muito além do horror da desfiguração e do sofrimento que isso implica: Janus era um deus dos antigos romanos que representava a passagem para um mundo (ou realidade) diferente. Tinha duas caras, uma para a frente e outra para trás (também nos mostram isso), como quem ao mesmo tempo olha para o que está antes e depois dessa passagem. Janus era altamente venerado, era aliás a primeira divindade (do seu nome derivou o nome do mês de Janeiro), pela importância que tem para a experiência humana o atravessar certas "portas". E por isso não falta o psicólogo a incitar o protagonista a "abrir a porta", e o passo final desta fita ser um espectacular mergulho no vazio.
"Vanilla Sky" tem muito que se lhe diga, muito mais do que pode caber nesta coluna. Em termos práticos, é uma boa produção, com bons actores (o casting levou o requinte ao ponto de escolher duas actrizes, Diaz e Cruz, com silhuetas quase iguais mas caras totalmente diferentes, Janus outra vez), uma realização estupenda de Cameron Crowe, e diálogos fascinantes. Vê-se de relance nos genéricos finais que é baseado num filme espanhol de Alejandro Aménabar (sim, o do mais recente filme de Nicole Kidman) chamado "Abre los ojos" e também com Penélope Cruz, que talvez mereça o esforço de tentar encontrar em video ou coisa assim. Mas, se vale a pena ir ver a remake americana (a "química" de Cruise e Cruz pode servir também de aliciante), é pena que não esteja muito à altura das coisas profundas que nos pretende mostrar: os diálogos são demasiado rápidos para que se possa ter tempo para reflectir nas coisas mesmo importantes que são ditas, e o conjunto precisava de uma narrativa mais hábil, e de um final menos trivializante.

04 A irmandade do anel — Vanilla sky (cont.) — Kubrick

Afinal, contrariando o que as más-línguas davam a entender, estreou-se nos Alfas de Évora "A irmandade do anel" — a primeira parte da trilogia "O senhor dos anéis". É uma fita que tem de encarar-se como um acontecimento de relevo no cinema actual, principalmente pela maneira como se geriu a sua produção. Desde logo achei incrível ver, no Fantasporto de 2001, anunciarem-se 3 estreias para os meses de Dezembro de 2001, 2002 e 2003. Que antecipação! De facto, como "O senhor dos anéis" se baseia numa longa peça literária homónima (de Tolkien) que se quis filmar ao pormenor, para optimizar os recursos disponíveis, filmou-se de uma assentada. Sendo que tinha de dividir-se a narrativa por três filmes, ainda por cima compridos, não admira que as rodagens fossem uma maratona de 14 meses. O primeiro já saiu da fornada da pós-produção, enquanto os outros continuam a ser trabalhados. Nunca se fez nada assim: as "sequelas" ("007", "Shaft","O padrinho", "Rocky", "Missão impossível", "Gritos", tantos etc.), assim como outras trilogias ("O silêncio dos inocentes" — "Hannibal" — "O Dragão vermelho", por exemplo), foram filmadas quando e como era possível em dada circunstância, não raro com diferentes realizadores e até diferentes actores. Com "O senhor dos anéis" está-se a ensaiar algo que provavelmente vai "pegar". E como primeira tentativa não está nada mal.
Os livros de Tolkien já têm várias décadas e afirmaram-se junto do público sem precisarem do cinema. O realizador neozelandês de "O senhor dos anéis", Peter Jackson, foi dos que cresceu a lê-los, e a sua ambição de transpor o mundo fantástico de Tolkien para as imagens em movimento está a concretizar-se desta maneira extremamente ambiciosa e não menos fascinante. As imagens são extraordinariamente belas, destacando-se as paisagens naturais (da ilha sul da Nova Zelândia), os incontáveis efeitos visuais, e principalmente a movimentação esplêndida de cenas como a perseguição a cavalo ou a fuga dentro da gruta. Já quanto ao argumento... bom, mais parece que é uma história de banda desenhada que, se fossem desenhos animados, se calhar não pareceria ter o ridículo que muitos lhe vêem em certos pontos. De facto, dá para perguntar se esse não seria o melhor formato para as histórias de Tolkien. Mas a opção de usar actores de carne e osso num projecto deste tamanho (se exceptuarmos Cate Blanchette, tudo actores e actrizes mais ou menos secundários, para não sair muito caro ora pois, mas é provável que as suas carreiras dêem um salto depois disto) implicou todas as inovações que este filme encerra, e pelo menos como novidade vale a pena ir ver "A irmandade do anel".
Na outra sala dos Alfas de Évora continuamos com "Vanilla sky", o mais recente do actor-produtor Tom Cruise, que já se abordou na semana passada. Depois de "Eyes wide shut" e "Magnolia", trata-se de mais um passo, para a carreira artística de Cruise, numa senda deliberada de afastamento da imagem que sempre teve: o herói fisicamente atraente e sempre vencedor. Um risco calculado, mas sempre um risco, este de revelar-se nos filmes ao contrário do que o público espera.
Esta semana a Sociedade Harmonia Eborense completa com "Laranja Mecânica" o seu ciclo dedicado ao realizador Stanley Kubrick. Esta fita tem uma faceta futurista muito mais certeira do que "2001 — Odisseia no Espaço": pinta um futuro que chocou toda a gente há 30 anos atrás, um futuro que se está tornando real. A não perder (mesmo para os que já viram)!

05 Black Hawk Down (Cercados)

Com a assinatura prestigiosa de Ridley Scott, chegou a Évora "Black Hawk Down" ("Cercados", Alfa 1). Esta fita é como que um documentário da batalha que teve lugar na capital da Somália em 3 para 4 de Outubro de 1993. O general Garrison, comandante dos contingentes especiais norte-americanos ali estacionados, quis aproveitar uma reunião de elementos do Estado-Maior do "senhor da guerra" Haidid, então o inimigo-público nº 1, para "extraí-los" de lá e fazê-los prisioneiros. A ilusão de uma missão "cirúrgica" que, apesar dos riscos, deveria concretizar-se em meia hora e sem baixas, veio a desfazer-se perante a queda de um helicóptero "Black Hawk", obrigando o general a improvisar uma saída mais airosa (ninguém podia ficar para trás) do que eficaz. Este filme mostra-nos que, durante perto de 20 horas — interrompidas apenas pela oração vespertina dos somalis (que são muçulmanos) — só se ouviram explosões, tiros e gritos, e só se viram mortes, sangue, destruição, e terror. Nesta fita com mais de 2 horas é tal a saturação com a linguagem das armas que se fica objector de consciência e com raiva das guerras. Há nomes conhecidos entre os actores (Josh Hartnett, Ewan McGregor, Tom Sizemore, Eric Bana) mas sem haver "estrelas", antes é a extraordinária realização (imagens belas e trágicas, acção envolvente, tensão permanente, dignas dos melhores exemplos neste género de cinema), assim como o libelo anti-guerra, que assumem o relevo maior. Grande filme!
E não pode deixar-se de notar a sua actualidade. A retirada da Somália em 1994 ficou para a História como o ponto final na ambição dos States de serem os "polícias do mundo" numa "Nova Ordem" internacional, lemas apregoados pelo então presidente (pai do actual) aquando da Guerra do Golfo. E hoje, em que nos impõem o lema da "luta contra o terrorismo", com a Somália a figurar na lista negra, a realidade tenderá a repetir-se, mesmo com a memória dos erros passados (e que esta fita ajuda a recordar). Os números da batalha de Mogadixo não enganam: o "Black Hawk" que foi abatido levava 4 soldados, e para evitar que estes caíssem nas mãos do "inimigo" acabaram por morrer 19 americanos e cerca de 1000 somalis. Mesmo assim houve um americano, que ia num 2º "Black Hawk" abatido, que foi feito prisioneiro, mas libertado uns dias depois. Tudo para quê? Por causa de tentarem apanhar um "senhor da guerra", como se isso resolvesse as questões (estratégia que se vê repetir-se hoje com outra personagem). A morte de Haidid em 1996 só teve implicações para o lado americano: o general Garrison reformou-se. Do lado somali, a miséria e a guerra continuaram à mesma.

06 Os outros

Esta semana temos nos Alfas de Évora o filme "Os outros", de Alejandro Amenábar (argumento e realização), produção espanhola com a chancela de Cruise-Wagner. Nada melhor como réplica do Fantasporto em Évora! Este filme mostra-nos uma mansão que se encontra quase permanentemente às escuras, com personagens de outras épocas (passa-se durante a Segunda Guerra Mundial, sob ocupação alemã, caracterização magnífica por parte de Nicole Kidman), álbuns com sinistras fotos de pessoas recém-falecidas, e presenças invisíveis ou aliás quase. A mansão está assombrada, e nela vive uma família que consiste de uma jovem dama muito elegante, os seus dois filhos que têm de viver longe da luz, e um grupo de 3 criados (que tinham falecido de tuberculose 50 anos antes!). Num ritmo lento mas com um crescente de opressão na atmosfera, onde a fugaz presença do dono da casa aparecido do nada parece introduzir uma pausa, a realidade revela-se numa cena de "contacto" com o além, um intenso momento de cinema que vira tudo do avesso.
A terrível realidade que se esconde ao longo de todo o filme talvez seja a mesma que condena tantas almas penadas a assobrarem mansões e castelos, quem sabe? Recomenda-se ir ver a todos os que apreciam o cinema fantástico ou simplesmente o bom cinema como é esta obra cheia de virtuosismo.

07 Uma mente brilhante — Façam as vossas apostas (Ocean's eleven)

"Uma mente brilhante" e "Façam as vossas apostas — Ocean's eleven" estão em cartaz nos Alfas de Évora esta semana. Duas fitas de grande calibre pelos pergaminhos dos seus intervenientes, mas tão diferentes entre si. A primeira é biográfica, tem um formidável Russel Crowe no protagonista (o matemático norte-americano John Nash, laureado com o Nobel de Economia em 1994), e leva-nos pelos meios académicos de élite («- o que vê? — reconhecimento. — diga antes obra feita... — onde é que está a diferença?»), pelos labirintos da psicose, e depois pelo poder do afecto e da lealdade. A segunda reedita um êxito comercial de há 4 décadas atrás, é uma ficção ligeirinha realizada por Steven Soderbergh à volta de um assalto "impossível" ao cofre superfortificado pertencente a 3 casinos de Las Vegas, onde aparecem vários actores bem conhecidos, com George Clooney à frente.
Há um lado realmente brilhante na mente de John Nash, que em 1948 o levou, de maneira absolutamente invulgar (onde até houve lugar à inspiração de uma musa loira de ocasião), a uma teoria que irá esperar 30 a 40 anos para dar frutos de grande glória para o seu autor, assim como um lado extremamente sombrio, do qual a sua insociabilidade é apenas uma ponta do iceberg,, e que "dispara" na sequência de uma missão secreta a que é chamado no Pentágono: a esquizofrenia. Para ele e para os que lhe estão ligados, sobretudo a mulher (Jennifer Connelly), é dolorosa a figura de génio matemático desajeitado que é presa de delírios que germinaram no ambiente poluído da Guerra Fria e do macartismo. Mas a mulher antes de todos, que teve a coragem de encarar outra solução que não fosse o reinternamento no hospital psiquiátrico, e depois o antigo rival Hansen (Josh Lucas), que lhe permitiu andar pela universidade onde andaram juntos, ajudam-no a operar o milagre de um novo equilíbrio. Das restantes personagens, destaque para a presença do prodigal roommate (Paul Bettany) e do psiquiatra (Christopher Plummer), numa fita que sabe recriar muito bem as diferentes épocas que atravessa esta biografia (embora imite descaradamente o estilo narrativo de "Pollock", do mesmo Ed Harris que aqui participa como Big Brother). Mas há muitos pormenores que não se admitem numa produção a este nível, reveladores de displicência ou descuido — cito dois: pôr um disco gravado em 1983 a tocar em 1947, e deixar os mesmos gatafunhos no quadro de ardósia do gabinete em cenas separadas de vários anos. Uma pena.
Os onze do sr. Ocean (Clooney) são: um burlão com muitas ligações no submundo (Brad Pitt), um carteirista (Matt Damon), um especialista em explosivos (Don Cheadle), outro em televigilância, um acrobata, um dealer de casino, dois condutores aptos a mascaradas diversas e pau para toda a obra, um aldrabão para passar por ricaço à Onassis com problemas cardíacos (o ricaço, não o aldrabão), e um financiador (Elliot Gould). Esta equipa de gente pouco recommendável juntou-se para "depenar" o impiedoso dono do cofre (Andy Garcia), de quem a sra. Ocean (Julia Roberts) é namorada no momento mas acaba por tornar-se o improvável 11º elemento de Ocean. São 2 horas muito divertidas mas superficiais, e o final feito-à-pressa (encontro final dos capangas, diálogo à porta da prisão pontuado por um tom machista que já não se usa) borra mesmo a pintura. Dá até para ter saudades da personagem de Roberts em "A mexicana"!

08 O Conde de Monte Cristo

Uma novidade desta semana é a chegada ao Alfa 2 de Évora de "O Conde de Monte Cristo", enésima versão do célebre romance desse nome da autoria de Alexandre Dumas (pai). Produção de 2001 da Irlanda e Reino Unido, mas contando com actores de Hollywood onde avulta um muito versátil Jim Caviezel no protagonista, segue à sua maneira o percurso do romance, que é a história de um bom homem vítima duma conspiração pelos que o invejam ou o temem — um clássico exemplo de que não somos apenas aquilo que julgamos que somos, mas também aquilo que os outros julgam que somos (e muito mais). A prisão, e depois o convívio dum outro recluso (Richard Harris) com o mesmo desejo de libertação, permitem a este homem, antes iletrado, indefeso e ingénuo, transformar-se por completo; mas também nele cresce o desejo de vingança e a renegação de Deus. O melhor desta fita está na primeira parte, que empresta grande detalhe a este período de reclusão. Também são muito bem encenados os vários duelos de espada, a caracterização da época é muito bem cuidada, e a representação de todos os actores é primorosa. Porém, esta versão do romance (muitos conhecem-no e não deixarão de lamentar o facto) está demasiado desequilibrada, pois a longa preparação da vingança do Conde/Zatarra/Dantes acaba por desenrolar-se à pressa no decurso da segunda parte. Mesmo assim a fita não deixa de durar mais de 2 horas, mas não deixa de valer a pena pelas suas diversas qualidades.
A outra novidade desta semana é o regresso do Núcleo de Cinema da SOIR Joaquim António d'Aguiar às lides, e com um ciclo de 4 semanas com alguns dos mais importantes filmes recentes que não passaram nos Alfas. O destaque vai para "O quarto do filho" e para "Mulholland Drive", nos dias 16 e 23 de Abril respectivamente. Para já, no dia 9 temos "Os filhos do século".

09 O quarto do filho

Se no que respeita aos Alfas de Évora a principal novidade a registar é o reaparecimento da sessão de final de tarde, onde uma consequência directa é a exibição de 3 fitas na mesma semana, o verdadeiro acontecimento desta semana encontra-se noutro lado, na sessão que vai ter lugar na terça-feira 16, à noite, promovida pelo Cineclube da SOIR Joaquim António d’Aguiar e aproveitando as boas instalações do auditório universitário à Rua Diogo Cão, 8, com “O quarto do filho”. Este filme do italiano Nanni Moretti, premiado em todo o lado excepto nos óscares da autodenominada academia em Hollywood, que nem a nomeação lhe concedeu (certamente por causa das simpatias políticas do seu autor), é sem dúvida um dos melhores de 2001, pena só que para já apenas tenhamos uma única sessão para vê-lo em Évora.
Depois de nos familiarizarmos com o psiquiatra (Moretti) numa pequena cidade italiana, sua mulher (Laura Morante) e os dois filhos adolescentes, vivendo na melhor das harmonias uma vida sem sobressaltos de maior, acontece o inesperado, fortuito, irremediável, desaparecimento do rapaz. A morte deste elemento da família, de um momento para o outro, desequilibra-a como se fosse uma cadeira onde se partiu uma das quatro pernas. A tragédia é magistralmente documentada, cada membro da família buscando não as razões mas um amparo para sobreviverem. “O quarto do filho” vai trazer a presença do filho desaparecido ao écran, através dos objectos, das cenas que desejavam terem acontecido, e sobretudo de uma rapariga que tinha permanecido em segredo para a restante família, no que parece uma escalada da paranóia de uma família destroçada, até que uma travessia do país, uma dádiva que em circunstâncias normais nunca teria sido feita, parece trazer um novo equilíbrio. A cena final mostra os três a passearem despreocupadamente numa praia da fronteira com a França, cada um para seu lado mas igualmente aliviados. Um final que não nos faz ir para casa com o peso do cinema às costas, pelo contrário, nos deixa o espaço para meditarmos nesta obra brilhante, onde um tema da gente comum é contado por imagens e diálogos comuns, sem pretensões de estilo senão a extraordinária capacidade de transmitir as emoções mais diversas. Cenas como a cantoria no automóvel, o momento em que a filha (e irmã) se apercebe de que algo grave aconteceu, o exercício patético da profissão de psiquiatra, são admiráveis. “O quarto do filho” é uma obra actual, de concepção inteligentíssima à qual nenhum adulto deve conseguir sentir-se indiferente. É uma fita para ser vista e revista por todos.

10 A verdadeira história de Jack, o estirpador — Mulholland Drive

Nos Alfas de Évora há a assinalar nova estreia (na sala 2) com “A verdadeira história de Jack, o estirpador”, e o retrocesso na opção de três sessões diárias. Sou um fã incondicional de Johnny Depp, que nos ofereceu personagens inesquecíveis em filmes como “Eduardo mãos de tesoura” e “A nona porta”, ou até o Bon Bon em “Antes que anoiteça”. No do estirpador, em que faz de um inspector de polícia londrino com “visões” auxiliadas pelos opióides e o absinto, não é um dos seus melhores, por culpa da relativa insignificância do filme. Para já, o título em português é um embuste: na origem é “From Hell” (do inferno), retirado de uma das cartas apócrifas que os jornais receberam na altura em que o estirpador original esteve activo. Trata-se de uma produção baseada numa banda desenhada, o que se nota demasiado pela superficialidade de tudo aquilo. Em seu abono, tem uma fotografia fantástica, é cruento quanto baste onde tem que o ser, e até não é mau como diversão.
Entretanto, tranquilamente se continua o ciclo de cinema da SOIR Joaquim António d’Aguiar, desta vez, como já tinha sido anunciado, com “Mulholland Drive”, de David Lynch. A sessão, única, é no dia 23 às 21 e 30, no Auditório da Rua Diogo Cão, 8. O filme marca um regresso do realizador aos seus melhores momentos. Com diversos prémios internacionais para a realização e para a actriz principal Naomi Watts, e diga-se que inteiramente merecidos, não tenho dúvidas em recomendar esta fita à generalidade do público. Em primeiro lugar, a beleza das imagens, que logo na sequência inicial da limusina a subir a estrada que dá o título ao filme nos deixa absolutamente rendidos; segundo, a classe com que são dirigidos os actores, com resultados espectaculares como naquele casting da actriz debutante; terceiro, o habitual clima de mistério tão próprio do realizador mas com um bocado mais de equilíbrio, sem grandes bizarrias (mesmo o facto de Camila começar por ser Rita, para dar um exemplo de confusão de identidades nesta fita, se torna aceitável). O problema está talvez no argumento, pois poderá não fazer grande sentido para muitas pessoas. Na minha modesta opinião, é uma história bem simples: tendo como pano de fundo certos bastidores de Hollywood, uma talentosa actriz de origem canadiana (Watts), cuja carreira se apaga na sombra da doutra actriz (a Condessa von Bismarck e ex-Miss América née mexicana, Laura Elena Harring) com quem tem uma intensa relação amorosa, ao ser atraiçoada resolve vingar-se e, consumida por remorsos vários, acaba por suicidar-se. David Lynch conta-nos histórias destas de uma maneira excessivamente barroca, é só. Mas com muita arte, e no meio disso aproveita para fazer pouco dos realizadores como classe.

11 Gosford Park

Gosford Park é o nome de uma propriedade dum senhor inglês endinheirado que, algures nos anos 30, convida uma série de seus “semelhantes” (leia-se, gente da alta), para passarem um fim-de-semana onde poderão passar um bom bocado juntos, a pretexto de uma caçada na dita propriedade. Eis o enredo de base da fita do mesmo nome que agora aparece no Alfa 2 de Évora. Se a princípio nos parece ser mais um daqueles derivados da “Família Bellamy”, logo se percebe que há uma vitriólica actualização na maneira como as castas aristocrática e serviçal são retratadas: o ponto de vista é maioritariamente o dos criados, aparecem sem disfarces as fraquezas, mesquinhezas e brutalidades dos lordes, e o ridículo das montanhas de convenções que condicionam os comportamentos é muito acentuado.
Ou não fosse Robert Altmann, o mesmo de “Pronto a vestir”, a dirigir este filme: a visão que nos é dada da chamada classe superior (tal como a da gente fina da moda de Paris na obra anterior), é bastante cruel: a ociosidade, a consabida obsessão pelo fruto proibido (a fazer lembrar os ratinhos marsupiais de um documentário de televisão há umas semanas atrás), a tremenda infelicidade pessoal (sentimental primeiro, mas não só), o anacronismo das etiquetas e das roupas (o contraste da presença dos “intrusos” de Hollywood é uma ideia extremamente bem explorada), não falta nada ali. Destaques para Michael Gambon (o anfitrião), Emily Watson (a sua amante), Jeremy Northam (o actor e compositor de sangue azul, no fio da navalha entre dois mundos), Maggie Smith (a condessa mais snob que se podia imaginar) e, é claro, para a sua criadinha escocesa com intuição de detective (Kelly MacDonald, irreconhecível em relação ao seu papel em “Trainspotting”!).
Ah, pois!, nesta fita há uma morte violenta, aliás a dobrar, mas é muito secundária: serve para reiterar-nos que cá se pagam as que se fazem, e para mostrar o que é uma investigação criminal mal conduzida. Este filme é divertido, muitíssimo bem arquitectado, e uma delícia para quem não for muito à bola com as aristocracias.

12 A profecia das sombras

Richard Gere num filme fantástico-género-sobrenatural? É "A profecia das sombras", que estreou esta semana no Alfa 2 de Évora. Baseada no livro de um certo John A. Klee (que é uma das personagens, representada pelo actor Alan Bates) e num desastre invulgar que ocorreu há poucos anos na pequena cidade de Point Pleasant, nos States, esta fita envolve-nos num clima de mistério marcado pela fatalidade que os homens apenas sabem ser iminente mas não podem evitar porque não vêem como vai realizar-se. Os sonhos e visões premonitórias dão pistas importantes, mas na fraca compreensão que podem ter deles, só depois se tornam claros (não me esqueço daquela vaca sobre o telhado em "Irmão, onde estás?"). Richard Gere faz de jornalista respeitado, uma das estrelas do Washington Post, cuja vida se vê de repente virada do avesso, após a estranha morte da mulher, com quem formava um casal feliz. Um belo dia mete-se pela estrada e o seu destino desvia-se inexplicavelmente. E logo de entrada, está quase para ser morto por ter lá aparecido nas duas noites anteriores!!! A seguir, e bastante acompanhado por uma sargento da polícia (Laura Linney), ele vai ver como os "contactos" com "entidades superiores" são frequentes e deixam toda a gente naquela pequena cidade em desespero. Sem histerias, sem tretas, esta fita até junta bastante novidade ao género, especialmente pelas imagens, tanto no trabalho com a câmara como com os jogos de luzes, desfocagens, pela montagem. Peca por um certo exagero nos efeitos sonoros, que por vezes oprimem sem necessidade, e pela evidência que o actor principal (que vai 95% bem) tem de começar a pensar em largar o seu visual de American Gigolo e conformar-se com uma imagem mais... madura. Repare-se como o Sean Connery deu a volta a esse problema...

13 Sala de pânico — A rainha dos malditos

Começando pelo fim no que respeita às salas Alfa de Évora, "Sala de pânico" é uma das tais fitas sobre as quais bastaria dizer: «não percam». Alto suspense de uma noite sem sono possível, numa casa em Nova Iorque que contém uma das tais salas de pânico à la mode: uma casa-forte feita para servir de refúgio para o locatário se houvesse um assalto, mas onde calha também esconder-se uma oportunidade de roubo para um sobrinho, tão cretino como oportunista, que acompanhou o ricaço nos últimos esgares. A nova inquilina (Jodie Foster) é que não imagina a teia onde foi cair, mas após muitos sustos e actos de valentia lá acaba por safar-se, mais a filha, não sem ter tido o proveito de alguém a ter servido com uma sova monumental no ex-marido! O argumento é excelente, e do ponto de vista da realização (David Fincher) tudo é perfeito artisticamente, até o uso e abuso do efeito "macro" da câmara, que nos oferece movimentações incríveis, não chega a cansar.
Uma ponta solta: o único ladrão sobrevivente (Forrest Whittaker) perde a liberdade e o dinheiro (que fica a redemoinhar pelo ar, ó que imagem tão emblemática) para salvar a protagonista (e a sua própria alma, dir-se-ia) — mas é isto verosímil? Querem fazer-nos acreditar que sim, pelo menos numa personagem como a de Whittaker, que é um trabalhador honesto que se deixou levar para o crime por sonhar em ter uma casa, como aquelas onde constrói salas de pânico, mas não ganha para isso. É errado roubar, é errado ser-se mal pago, é errado (talvez) sonhar, mas o pior erro seria tornar-se desumano.
Quanto à outra fita (Alfa 1: «A rainha dos malditos»), é mesmo muito "gótica". Mesmo para os "devotos" deste estilo, a comparação com o filme "O corvo" não deixará de ser pouco lisonjeira. Fita com pouca imaginação e até um bocado chata.

14 O caso do colar

"O caso do colar" (Alfas de Évora) transporta-nos no tempo para a corte do rei francês Luís XVI, aquele que seria deposto na sequência da revolução de 1789, portanto no crepúsculo de uma sociedade que ficou conhecida como o Ancien Régime. Talvez empoladamente, atribui-se a este caso histórico uma relevância decisiva para o precipitar dessa revolução, nomeadamente pelo exacerbar da antipatia pela rainha Maria Antonieta, de origem austríaca. Tudo parte da criação de um magnífico colar de brilhantes concebido para essa rainha, e que ela recusou altaneiramente — para desespero dos joalheiros, que se viram muito apertados financeiramente. Mas estes rejubilaram ao saber que haveria um comprador, na pessoa dum cardeal ávido de poder, que assim acreditava conquistar as graças da desdenhosa rainha. Isto foi possível porque um par de obscuros aristocratas forjou uma cada vez mais entusiástica correspondência entre o femeeiro clérigo e Sua Alteza. Pago o colar, este foi sendo desmantelado e as pedras vendidas (coisa que os joalheiros poderiam ter feito para saldar as suas dívidas, mas a vaidade...), alimentando os apetites dos burlões até que a tramóia veio ao de cima. Houve enfim um julgamento muito "mediático" que ilibou o otário, castigou os restantes culpados (excepto um, que escapou para... a Áustria), e de certa maneira condenou a Casa Real à reclusão.
A fita é um bocado longa mas não é aborrecida, pois está muito bem arquitectada e conta com a cativante presença de Hilary Swank na personagem principal. A magnífica reconstituição do caso e da época, na abundância de detalhes preciosos que traz, é por certo servida no livro autobiográfico contando a história desta aristocrata, que quando ainda era criança viu tudo ser-lhe tirado pelo Estado, por causa da oposição política que representava o pai dela. Nunca tendo conseguido fazer valer os seus direitos por causa do desdém dos monarcas e da irredutibilidade desse mesmo Estado, decidiu conquistá-los pelo dinheiro, e obteve-o extorquido a um cardeal safardana. É uma personagem fascinante e a sua história é bem carismática de uma época que pode ter tido os seus encantos quando comparada com o que se seguiu a 1789, mas que tinha de cavar a sua própria sepultura pelo abuso e pelo anacronismo.

15 O homem-aranha

Na sala 2 do Alfa de Évora continua, e na já ritual 3ª semana dos grandes sucessos de bilheteira, "O homem-aranha". Podia ser recebido com aquela frase "Oh não! mais um filme de adolescentes", que de facto é, mas este tem ambições comerciais muito mais altas (e como é sabido, estão a ser extraordinariamente conseguidas). Do argumento aproveita-se pouco, bem ao estilo do tal género de filmes. Dá-se a relevância devida à sábia frase do tio de Peter Parker, que vem de origem associada a este anti-herói tornado super-herói da Marvel Comics, na sequência de uma picada duma aranha transgénica (actualização conveniente em relação a radioactiva): «com grande poder vem grande responsabilidade» (será isto um recado para o presidente dos States?). Na linha de quase todas as bandas desenhadas para adolescentes, tudo se reduz à luta do Bem contra o Mal, onde se ilude o público que o primeiro tem de depender dum super-herói providencial e o segundo se resume a um super-vilão que acaba por ser aniquilado, não esquecendo os imperativos de anonimato e castidade, uma espécie de maldição associada à tal responsabilidade, que se impõem ao super-herói. Mas está visto que o público não se importa...
Até gostei da fita, porque é divertida no geral, e sobretudo porque tem a seu favor magníficas sequências animadas dos voos do Homem-Aranha sobre Nova Iorque (o vício dos Computer Graphics está cada vez mais entranhado em Hollywood), um actor muito bem escolhido para o protagonista (Toby Maguire), e pequenas preciosidades nas entrelinhas, como a posição do cientista (Willem Dafoe) a ser vítima dos interesses de lucro dos todo-poderosos investidores que financiaram o projecto bélico a que ele, com a sua equipa, tão zelosamente dava corpo. O Mal tem sempre outro Mal por detrás, não é?

16 Terra de ninguém — as que não se viram (I)

Agora que já estamos na segunda metade do ano, calha bem lembrar algumas das fitas que não estrearam em Évora na primeira, fitas que não se viram e que no entanto teriam dado satisfação a muita gente. No lote das nomeadas para óscares sonantes, ou até ganhadoras, havia que contar com "Vidas privadas", sobre um casal de meia-idade (Tom Wilkinson e Sissy Spassek) cujo filho único é assassinado, com "Depois do ódio", ódio esse o alimentado de preconceitos raciais (com Billy Bob Thornton, Halle Berry, e ainda Heather Ledger e Peter Boyle, todos excelentes), com "A força do amor", onde se mostra a arbitrariedade do sistema de solidariedade social, demasiado abstracto para reconhecer o valor do indivíduo para além das aparências (com um gordo Sean Penn em alto nível), com o belo "Mulholland Drive" de David Lynch, já aqui abordado a propósito da sua passagem pelo "Pátio do Cinema", onde no próximo dia 16 haverá agora a oportunidade de ver outra grande fita: "Terra de ninguém" de Danis Tanovic´.
Trata-se, neste caso, de uma produção eslovena que nos traz a guerra da Bósnia, essa negra página da História recente da Europa. Galardoada com o óscar para melhor filme estrangeiro, dá para aplaudir a escolha, pois esta fita sabe revelar-nos, com o realismo de uma operação cirúrgica ao qual se junta um grande argumento, uma imensidão de facetas daquele conflito (incluindo imagens reais de certos políticos, não recomendável a pessoas sensíveis). À volta de uma trincheira, o medo, o rancor, o sadismo, a propaganda, são os tijolos de um muro invisível que separa homens que nasceram a partilharem a mesma terra, cresceram a usarem a mesma língua, tomaram o gosto pelas mesmas mulheres... Naquela trincheira inabitada, a meio-caminho entre as frentes muçulmana e cristã-ortodoxa mantidas a distância pela força de manutenção de paz (capacetes azuis), a sucessão de absurdos desafia as mais loucas previsões de qualquer espectador, culminando numa visão final do soldado impossibilitado de mexer-se e abandonado à sua sorte, metáfora de um país armadilhado. Uma fita à altura dessa enorme tragédia, em sessão única na Sociedade Joaquim António d'Aguiar na próxima terça-feira às 21 e 30.
Outras fitas ficaram por aparecer em Évora, e algumas comprovaram o seu sucesso em Portugal: desde logo "O quarto do filho" de Nanni Moretti (Itália), que também já passou pelo Pátio, "E a tua mãe também", dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón (o mesmo que há-de dirigir uma continuação de Harry Potter), onde acompanhamos a hilariante jornada de dois chavalotes bem-nascidos com uma mulher mais velha, onde as verdades se vão destapando ao ritmo a que as crostas da aparência se soltam, e o maravilhoso "Fale com ela" de Almodóvar. Já com menos sucesso mas a justificarem menção, no mínimo há que referir "The Majestic" com Jim Carrey, um filme sobre honestidade, sobre ilusões, sobre a esperança de poder mostrar aos que mandam como traem aquilo que dizem defender, "Domingo sangrento" com James Nesbitt, reconstituição histórica da célebre manifestação na Irlanda do Norte em 1972 (que os U2 ajudaram a lembrar, por causa da repressão envolvida), filme ao mesmo tempo documental e aterrador (contudo, excelente), "A experiência", fita alemã sobre a besta humana, como só os alemães saberiam fazer, e finalmente o filme americano "Os rapazes da minha vida", baseado na autobiografia de uma escritora (interpretada por Drew Barrymore) onde as contrariedades que se interpuseram a que manifestasse o seu talento são o verdadeiro protagonista. Isto, para não alongar-me com outras menos interessantes ou que não pude ver, só em meio ano...

17 Infiel

Está esta semana, num dos Alfas de Évora, a fita "Infiel", de Adrian Lyne. Inspirada numa obra quase homónima de Claude Chabrol, esta traz-nos a história de uma mulher (Diane Lane) que se deixa seduzir por um negociante de livros mais jovem, charmoso, e francês ainda por cima (Olivier Martinez). Esta mulher é casada com um homem de negócios de Nova Iorque que faz tudo pelo bem-estar da família que formaram (Richard Gere), e têm um filho (representado por um miúdo que daria uma encarnação perfeita do Alfred E. Neuman), para além de serem uma família respeitada na comunidade suburbana granfina onde vivem.
Não é uma história moralista. Desde o derradeiro filme de Kubrick ("Eyes wide shut") que não via um retrato tão interessante dos dramas da vida conjugal e dos dilemas da infidelidade. A mulher protagoniza a primeira parte do filme, o marido a segunda, ficando uma terceira para os dois enfrentarem as consequências dos seus actos. A direcção de actores é extraordinariamente conseguida, tanto Lane como Gere nos dão excelentes interpretações que só por si deleitam o espectador, com abundância de pormenores expressivos que enriquecem o drama.

18 Resident Evil

No Alfa 1 de Évora apareceu "Resident Evil", de Paul W. S. Anderson. Não o realizador de "Boogie Nights" e "Magnolia", mas sim um conterrâneo do Mr. Bean com ainda pouco currículo mas, pela qualidade técnica que aqui evidencia, bom profissional. Esta produção anglogermânica, filmada sobretudo em Berlim, é um filme futurista de terror que vai buscar elementos aos mais diversos antecessores (o mais evidente dos quais é "A esfera") sem ir além de um divertimento para quem goste de ver muitos a morrerem. O domínio da tecnologia sobre o homem, e o facto dela estar nas mãos de um quase omnipresente gigante privado, são temas muito interessantes que transparecem logo desde o início, mas para além dos textos iniciais a situar o espectador e os diálogos numa cena-trégua dentro do laboratório alagado, quando algumas personagens sobreviventes contam uns aos outros as suas histórias (e em poucas palavras), o que a maior parte do público vê são balas, sangue, monstros e adrenalina a rodos. O plano final desta fita é visto como mais um caos qualquer, sem contexto. Se Anderson (autor do argumento) pretendia fazer passar uma mensagem sobre as consequências da concentração de poder tecnológico nas grandes corporações privadas (incluindo a possibilidade de produzir um vírus sem qualquer arbitragem, e acabar por não conseguir assegurar a sua contenção), duvido que a maior parte do público lhe desse atenção. E é pena, porque esta temática tem cada vez maior actualidade e merece ser reiterada. Como divertimento que poderá ser para muitos, há coisas que valorizam a fita: a implacável exterminação dos habitantes da "colmeia"; o requinte da cenografia (e aliás de toda a produção), na qual a bela actriz Milla Jovovich brilha tão bem; a cena do corredor dos raios laser com vocação de fiambreira. Tudo isto durante a primeira metade, pois logo que se começam a ver os mortos-vivos a tomar conta da "colmeia", aí a fita descamba de vez.

19 Mulher fatal

No Alfa 2 de Évora estreou esta semana “Mulher fatal”, história de bandidos e de redenção escrita e realizada por Brian de Palma, com a bela modelo Rebecca Romijn-Stamos, acompanhada por um Antonio Banderas, mais uma vez excelente, a fazer de peão bastante ingénuo numa tramóia de alto coturno envolvendo a protagonista. Tudo se passa em França, principalmente num bairro castiço de Paris, e o enredo gira à volta de um roubo de diamantes durante uma sessão especial do Festival de Cannes 2001, golpe bem-sucedido mas com bastantes estragos entre os participantes. A “loira” da fita, maquiavélica, safa-se com o produto do roubo, mas é perseguida por um dos capangas que traiu, até ser recolhida por um casal de meia-idade que a confundem com a filha deles. É nessa casa que ela tem oportunidade de se reencontrar consigo própria, isto é, fazer aquilo que é justo nem que seja por uma vez, mas pelo contrário foge em busca doutra vida. As coisas parecem correr-lhe bem até que o Destino (personagem nada secundária nesta fita) a leva a confrontar-se com o seu passado 7 anos depois. Banderas, a fazer de fotógrafo idealista (com talento de paparazzo), está nas duas datas, só que na segunda brinca com o fogo e acaba por queimar-se. Não sem antes ver, e com grande satisfação, a queda da mulher fatal. É aqui que este atribulado filme nos dá uma volta completa, pois o que num sonho parece durar mais de 1 hora pode ser na realidade 1 segundo, e daí para a frente é uma recapitulação para um final feliz.
Antes assim. Afinal, a recompensa por fazermos o bem é o bem para as nossas próprias vidas, mesmo que isso por vezes signifique sacrifícios pessoais e termos de deixar os outros tomarem o nosso lugar naquele avião. Quando vemos a cena da roleta russa, essa cena sem espavento onde converge tanto desta fita espectacular, perguntamo-nos certamente: «como é possível ser-se tão insensível para não tentar impedir uma tragédia diante dos próprios olhos», ou antes «como pode ser-se tão vil, para roubar e depois assistir impávido e sem peso na consciência à consequência terrível desse roubo». A fita de Brian de Palma, para além dum espectáculo cinematográfico do mais alto nível (como é refrescante ver as maravilhas que se fazem com uma tão imaginativa utilização da luz, da câmara e da montagem), oferece-nos uma reflexão sobre o Mal que há dentro das pessoas, principalmente daquelas que vivem a fazer mal aos outros, e sobre o caminho para combatê-lo — rejeitando a mentira. Assinale-se a presença e o desempenho extraordinários da poliglota Romijn, que embora se inspire na mais famosa interpretação de Sharon Stone (até nas cenas quentes com outra mulher) sabe não cair no plágio, até porque tem outros “argumentos”... Concerteza que vai valer a pena passarmos a contar com esta Actriz nos anos que estão para vir.

20 Não brinques com estranhos

À porta do quarto 17 dum motel algures em Utah ou arredores, bate um camionista TIR que se dá a conhecer aos macanudos como "Rusty Nail" (unha ferrugenta, à letra) e traz uma garrafa de champanhe cor-de-rosa para um encontro romântico com "Candy Cane" (rebuçado de cana), marcado via rádio. Uma surpresa o espera, mas a reacção dele ao logro vai deixar ainda mais surpreendidos o locatário do quarto, os dois manos (Steve Zahn e Paul Walker) que pregaram a partida a ambos, e um sem-fim doutros intervenientes, entre os quais a verdadeira "Candy Cane" (a sensuacional Lili Wobiecki), a sua amiguinha de descapotável, e um outro camionista que afinal não era o "Rusty Nail" e que se meteu na história porque queria devolver um cartão de crédito que ficou para trás no meio do pânico — para mal dos pecados dele, vá-se lá ser honesto!
Trata-se de "Não brinques com estranhos", típica estreia de época baixa que preenche o calendário e enche de satisfação todos os que não vão só pelas modas mas sim que procuram fitas inteligentes e com emoções a rodos. Para além da lição de moral que o título obviamente veicula, e que nesta história de puro terror é dada de maneira tão eloquente, o que fica é a quase certeza de estarmos perante um pequeno clássico do género fantástico, com ingredientes inovadores que irão ser imitados e recapitulados das mais diversas maneiras no futuro. A começar pela exploração do efeito duma voz (bem cavernosa) sem rosto.

21 Caminho para Perdição

No Alfa 1 de Évora estreou "Caminho para Perdition", a nova fita do realizador Sam Mendes, e desde logo cabe aqui dizer-se que o criador de "Beleza americana" ficou bem à altura das grandes expectativas que era legítimo ter em relação ao seu novo filme. Sem ter o apelo da contemporaneidade e o poder subversivo do seu antecessor, é à mesma uma obra notável. Perdition é uma pequena localidade com uma praia, à beira dum lago, onde o protagonista chega a julgar poder refugiar-se; quanto a haver alguma "perdição", é a de quase todas as personagens, cujas vidas podem acabar a qualquer momento num tiroteio qualquer. Está-se no auge da Grande Depressão, uma altura em que a sociedade norte-americana vive o terror do gangsterismo em acréscimo ao da miséria do desemprego — a imagem das pessoas assomando às suas janelas para verem o resultado de mais um tiroteio é um poderoso testemunho desse estado de terror.
O protagonista (Tom Hanks) é um elemento típico desse mundo, servindo como "gorila" para o seu patrão (Paul Newman), homem todo-poderoso numa pequena cidade industrial povoada por irlandeses. Quando metade da sua família é assassinada, ele arrasta o único filho que lhe resta numa odisseia onde consegue o aparentemente inconciliável: obter a vingança, e perservar esse filho do mundo infernal a que ele próprio pertence e tão bem antecipa. Nessa odisseia se vêem muitas mortes no meio dos comportamentos mais desprezíveis, algumas até com toque de tragédia: a do patrão pela "arma" que ele próprio criara para servi-lo, a dum fotógrafo pela fotografia que acaba de tirar, ou a do auto-apelidado futuro pelo presente. Odisseia onde o protagonista se apercebe como ele próprio é uma peça duma máquina que devora tudo para o "bem" dos negócios sórdidos que a alimentam. É muito interessante como acaba por conseguir manipulá-la para atingir os seus fins.
A par de Hanks destaca-se Jude Law, com uma excelente caracterização (quase em pantomima) no papel do assassino contratado para eliminar o protagonista, e ainda a omnipresente banda sonora, a caracterização de certos aspectos da vida de Chicago, o retrato do frio daquele inverno de 1931, os efeitos especiais (nunca vi nada tão "explícito" como aquela bala a atravessar o vidro traseiro do carro), mas a virtude principal desta fita é mesmo aquilo que nos deixa para reflectir, se quisermos fazê-lo, sobre a crueldade destas vidas perdidas — o final algo chocho e moralmente neutro não disfarça o travo amargo daquilo que se viu antes.

22 Relatório minoritário

Esta semana chegou a Évora (cinema Alfa 1) "Relatório minoritário". Com Tom Cruise como produtor e protagonista, e Spielberg a realizador, só pode ser um sucesso de bilheteira. E merece-o, é um grande espectáculo de cinema: eu até fui vê-lo com uma grande camada de sono em cima mas o meu interesse ficou bem "desperto" até ao fim desta fita, que por sinal é um bocado longa.
O tema central envolve uma unidade de polícia chamada Precrime que no ano de 2038 montou um sistema de antecipação, baseado no "pré-conhecimento" de três jovens, a crimes de homicídio no estado onde se encontra a capital dos States (District of Columbia ou D.C.). Estes 3 Precogs são dos poucos filhos de mulheres que consumiam uma nova droga chamada neurocaína durante a sua gestação e sobreviveram, e que, em consequência da acção dessa droga, têm esses dotes de vidência "postos ao serviço" da Precrime. Totalmente sujeitados ao papel que lhes estava apontado, como animais de estimação, os 3 encontram-se numa pequena piscina, alimentados por um "tratador", com eléctrodos nas suas cabeças que os ligam a uma máquina; esta, no melhor estilo totoloto, ao ser verificada a iminência de um homicídio, faz descer uma bola de madeira com o nome da vítima a salvar, e outra com a do antecipado assassino a ser detido. A acção desta fita desenrola-se em D.C. volvidos 6 anos, onde graças a este sistema "infalível" os crimes de homicídio (mas não os restantes) deixaram de acontecer; mas também onde as pessoas estão todas identificadas pela sua íris (que, como uma impressão digital, é única para cada pessoa), sendo instantaneamente reconhecidas por sistemas de vigilância quando entram em certos edifícios ou saem dos transportes públicos, ou até dentro das suas casas quando uns aranhiços-robot são largados para escrutinar tudo dentro de um edifício (inspirados nos spiders da Worldwide Web); onde, ainda, se contrabandeiam globos oculares, onde a neurocaína foi substituída por sucessivas gerações de drogas sintéticas ainda mais sofisticadas, e onde se vão acumulando corpos de presumíveis assassinos, nas instalações da Precrime, numa espécie de sono-detenção.
O chefe operacional da Precrime (Tom Cruise) é apontado como assassino para daí a quase 2 dias. A maior parte do filme é da sua fuga, pois ele sabe muito bem para aquilo que está guardado... Isto, numa altura em que o sistema vai começar a ser implementado no resto do país e se desenrola um jogo de bastidores pelo domínio desta presumível mina de ouro ou, pelo menos, de poder. O mentor de Cruise e chefe máximo da Precrime (Max von Sydow) é um dos potenciais beneficiários desse jogo, e há um delegado federal (Colin Farrell) que anda a investigar o funcionamento da Precrime antes de se tomarem essas decisões e, pelo menos aparentemente, quer tirar o lugar a Cruise. O final é feliz, sobretudo porque os 3 Precogs voltam a ser gente, longe (quilometricamente) da possibilidade de "presenciarem" homicídios por antecipação (bonita a imagem deles a lerem livros — dos bons, presume-se).
Se a história em si mesma é um bocado banal (tem-se tornado evidente uma certa crise de qualidade no seio dos argumentistas em Hollywood, o que não admira conhecidos que são os ecos da rebeldia reinvindicativa de há vários meses atrás), esse é talvez o único ponto menos bom da fita: a ideia do sistema Precrime é um aviso para as sociedades de hoje, que aceitam cada vez mais trocar as suas liberdades e direito à privacidade por uma promessa de segurança, previne-nos da ilusão que é atacar um problema (neste caso o homicídio) e deixar tudo o resto que está mal (a ganância, a miséria...) na mesma ou pior, mostra a injustiça de um sistema que "arruma" com pessoas que iriam cometer um homicídio (mas foram impedidas), sem julgamento, sem perdão possível... relaciona-se com tanta coisa que é ou devia ser preocupação do nosso quotidiano, como a pena de morte, a suposta prevenção de ameaças de terrorismo antiamericanas, as câmaras de vigilância, os sistemas ditos infalíveis (se não se levar em conta poderem ser manipulados por dentro).
A realização de Spielberg é magnífica, um festim visual como poucos (ou só ele...) saberiam oferecer, na minha opinião o mais bem-sucedido exercício de futurismo desde "Blade Runner" — o que não surpreende, ambos (a que se junta "Total Recall", o melhor filme de Schwarzenegger) derivam de obras de Phillip K. Dick, um inspirado e muito apreciado autor de prosa de ficção científica. Quanto a Cruise, como sempre tem uma boa presença, mas pode arriscar-se a alienar aqueles que (ainda) vão ver os seus filmes esperando reencontrá-lo na imagem que forjou ao longo de década e meia. Já é pelo menos o 4º seguido que atira para o "intelectual"...

23 Dragão vermelho — Sinais — despedida (até ver...)

Finalmente, e antes que o insubstituível Anthony Hopkins ficasse demasiado velho, lá se completou a trilogia de Hannibal Lecter com a fita "O dragão vermelho", agora a rolar no Alfa 1 de Évora. E que estupendo resultado aquilo deu, não haja dúvida. Dirigida por Brett Ratner, transmite-nos em beleza o mesmo clima opressivo de "O silêncio dos inocentes" e "Hannibal", os outros desta trilogia, mas beneficia ainda mais com um leque de actores e actrizes de grande categoria a fazerem juz às respectivas qualidades artísticas (três dos mais importantes são ingleses, talvez não por acaso), e nós que nos deliciemos com isso. Assim, além dum Hopkins que se esforça notavelmente para nos fazer esquecer os quase 12 anos que passaram desde o primeiro filme em que encarnou Lecter (especialmente porque "O dragão vermelho" é cronologicamente o primeiro da trilogia, começando precisamente na altura em que ele foi descoberto e preso), destacam-se: Edward Norton, no papel do agente que o conseguiu prender e depois é o primeiro a ter de funcionar como "alma-gémea" de Lecter para levá-lo a ajudar o FBI a apanhar um novo criminoso que mata famílias inteiras com encenações macabras; Ralph Fiennes, ressuscitado de cinco anos de filmes chochos ou mesmo risíveis para uma magnífica personificação desse criminoso, um atormentado homem solitário que ritualiza as suas "obras" como parte dum processo de transformação no tal dragão vermelho, figura diabólica duma gravura do poeta e artista inglês William Blake; e Emily Watson, uma invisual colega de trabalho de Fiennes e que tem com ele uma relação de afecto mútuo com muito que se lhe diga. Nesta primeira parte da trilogia, Norton reformou-se do FBI, tem mulher (Marie-Louise Parker) e filho, e vive retirado numa pequena terra costeira na Florida; com relutância, aceita ajudar o seu antigo chefe (Harvey Keitel) a investigar os assassinatos de Fiennes, e acaba por recorrer aos serviços de aconselhamento de Hopkins. Só que Hopkins recebe correspondência de Fiennes, seu admirador, e enquanto solta umas migalhas para Norton entreter-se, convence Fiennes a dar-lhe caça para que não seja apanhado. É assim que, nos intervalos da sua "transformação", o Dragão Vermelho procura liquidar o homem que prendeu o Dr. Lecter, mas não há palavras que possam substituir este filme, e isto apesar de ser baseado num romance...
Na sala 2 está uma outra fita que não deve ser perdida: "Sinais", uma renovada abordagem da temática sobre extraterrestres invadindo a Terra da autoria de M. Night Shyamalan, contando com Mel Gibson e Joaquin Phoenix entre os actores. Para quem o vai ver por causa do perfeccionista realizador de "O sexto sentido" e "O protegido", ou para quem gosta de seguir a carreira de Gibson, concerteza que virá satisfeito da sessão; mas para quem só vai pela propaganda, é bem capaz de ter preferido ficar a ver o Big Brother, pois além duns sobressaltos com bastante impacto, a sensação que vai provavelmente prevalecer será semelhante à de muitos filmes portugueses, pelo seu ritmo lento e o insistente jogo de gato-e-rato com o espectador, tantas vezes a querer ver e não poder. Mas asseguro que é uma fita estupenda, pois além do fio condutor, que vai dos sinais da iminente invasão por uma frota de extraterrestres, ao terror que se apodera de todos durante a expectativa, ao encontro imediato com um deles e ao súbito alívio da ameaça, temos em primeiro plano o drama de um padre anglicano que renegou a sua Fé quando viu morrer a sua mulher esmagada por uma carrinha contra uma árvore. É esse reverendo (a personagem de Gibson) que a certa altura mostra ao simplório do seu irmão (Phoenix) como é diferente, entre quem tem e quem não tem Fé, encarar o desconhecido, a perspectiva de morrer, a impotência perante a ameaça: nos primeiros há esperança, e nos segundos há apenas o pavor. É também neste filme que vemos as notícias serem dadas com uma sobriedade que nos faz pensar no avassalador barulho das televisões e rádios, discutivelmente necessário para prender as nossas fracas atenções num dia-a-dia banal mas totalmente desajustadas quando se tem a noção que tudo pode estar a acabar dum momento para o outro. Lembrando que o realizador é indiano (e, desta vez, atribui a si próprio um papel de alguma substância, o do veterinário que fez o reverendo ficar viúvo), não resisto à tentação de estabelecer um paralelo entre os extraterrestres (que vêm, não para tomar a Terra, mas sim para sugarem os seus habitantes) e a colonização britânica que tanto marcou (e de alguma maneira ainda marca) a vida do subcontinente indiano.
De certa maneira, esta coluna acaba como começou. Não posso continuá-la por limitações pessoais. Resta-me saudar todos os amantes do bom cinema leitores do "Diário do Sul" e esperar que "As fitas que se vêem" tenha sido um bom serviço. Para mim foi um grande prazer poder realizá-la.

24 As que não se viram (II)

Até ao fim do ano, pelo menos faltou ver em Évora as seguintes: "O homem que chora", bela fantasia à volta da ópera e de um conjunto de vidas vagueantes, esplêndido elenco com Cate Blanchett, Johnny Depp, Christina Ricci e John Turturro, "Italiano para principiantes", mais uma edição DOGMA de Lars von Trier onde observamos clinicamente uma série de personagens solitários que se juntam para aprender italiano e depois até vão à Itália, "Beijando Jessica" o mais interessante filme que já vi sobre uma relação homossexual, "Donnie Darko", a história duma morte adiada digna do mais imaginativo cinema fantástico, "Insónia", um caso de homicídio que se passa no Alasca, investigado por um detective que forjava a sua reputação e não só, e onde figuram Al Pacino, Robin Williams e Hillary Swank, "Manobra perigosa", sobre o dia infernal de dois homens (Samuel Jackson e um surpreendente Ben Affleck), à medida que se prejudicam mutuamente, um reflexo amargo da decadência das relações humanas, e "O pianista" de Polanski, uma poderosa adaptação do raríssimo testemunho de sobrevivência de Wladislaw Szpilman, um artista polaco de etnia judaica que viveu no gueto de Varsóvia e depois na clandestinidade. E, claro, a versão restaurada ("redux?" de "Apocalypse Now" de Coppola, agora a fazer muito mais sentido e com uma mensagem política importante que, por motivos mais que evidentes, não podia passar em 1979.

Nazaré

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